quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

FAMÍLIA-KIRINGUI



Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é
um problema, principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a
qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência.
Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes,
dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm
a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e
aquele fastio. Mas a vida, (azeitona verde no palito) sempre arruma um jeito
de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número
de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais
brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou,
endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto,
abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais
apaixonada. A outra, a mais consistente.

E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer
companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais
sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja
quem for, não fique aí reclamando do gênero e do grau comparativo. Reúna
essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há
pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue
a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também
estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é
prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de
tristeza.

Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se
misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África
e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais
colorida, interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo
e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível.
Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso
ter boa mão, ser profissional. *Principalmente na hora que se decide meter a
colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha
desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora
errada.

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à
Rossini; Família à Belle Meunière; Família ao Molho Pardo, em que o sangue
é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é "à Moda da Casa".
E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.

Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também
as que não têm gosto de nada, seriam assim um tipo de Família Dieta, que
você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que
deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é
insuportável, impossível de se engolir.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo
aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente
cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no
pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça
de um velho já meio caduco como Kiringui. O que este veterano cozinheiro pode
dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é
prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie.
Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na
porcelana, na louça, no alumínio ou no barro.

Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se
repete.


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